Para o homem, o natural
não é viver
livre em liberdade, mas viver livre em um cárcere.
Malaparte
Dentre os animais, o homem é o mais vulnerável; não
tem carapaça, nem couro, nem sequer pêlo que recubra sua pele. É um ser mais
nu que uma lombriga e mais frágil que uma larva.
Para o Grande Organizador de Catástrofes, o homem é
a vítima ideal, pois não existe outra que, como ele, seja consciente de sua
condição. É inteligente, engenhoso, e se obstina comicamente em escapar a seu
destino de presa... o que torna ainda mais atrativa a caça ao homem, que a
natureza pratica sem quartel.
Em conseqüência, e mesmo que possa parecer
paradoxal, as circunstâncias em que o homem tem mais possibilidade de
sobreviver - as estatísticas demonstram isso de modo seguro - são precisamente
as catástrofes de que ele em pessoa é o autor e o responsável, vale dizer: os
acidentes automobilísticos e as guerras.
Encerrados nessas cascas de ovo que nós chamamos
''automóveis", os motoristas lançam-se uns atrás dos outros - ou uns
contra os outros -, adiantando-se, esbarrando uns nos outros e se esquivando
com margens de segurança não superiores a poucos centímetros.
Ademais, nenhum dos participantes deste jogo
perigoso respeita as regras, donde o razoável seria pensar que não pode haver
sobreviventes ao final de um balé tão louco. Entretanto, e contrariando todas
as expectativas, as estatísticas provam que, dos milhões de alucinados que a
cada dia jogam este jogo, só alguns milhares nele encontram a morte. O que, em
definitivo, equivale a dizer que cada um de nós, quando sai para a estrada, tem
tanta possibilidade de morrer violentamente como de ganhar o primeiro prêmio da
Loteria Nacional.
Os mortos somam uns quinze mil por ano, sendo que
esta cifra engloba os pedestres atropelados... o que não é justo. De qualquer
maneira, devemos reconhecer que a proporção de vítimas é ínfima, se levarmos em
conta as centenas de milhões de pessoas que, ao longo dos 365 dias do ano,
arriscam a sorte voluntariamente no jogo do automóvel e da morte. Considerando que
a migração motorizada dos fins de semana converteu-se no esporte viril da
humanidade, o preço não é exagerado: o bilhar ou o críquete são, afinal de
contas, quase igualmente perigosos.
Imaginemos, por um momento, que os homens
enfrentassem com a mesma despreocupação, com a mesma temeridade, as forças
hostis da natureza. Que hecatombe! Mas, por sorte, a humanidade não cessou de
inventar vacinas contra as epidemias, diques contra as inundações, edifícios
elásticos contra os terremotos, pára-raios contra o fogo do céu, silos e
conservas contra a fome, pílulas contra o excesso de população, religiões
contra o desespero...
Da guerra podemos extrair uma conclusão análoga e
que é, ao mesmo tempo, tão paradoxal quanto consoladora. É surpreendente
constatar que, para matar um só homem, se necessite de tantas toneladas de
metal, de matérias explosivas, de petróleo, de gases e mais uma infinidade de
outras coisas. Tudo isto para que, ao cessar o inferno provocado, o número de
sobreviventes supere o de vítimas! O assassinato coletivo organizado não é uma
atividade rentável. Nem sequer a bomba atômica compensa seu elevado custo:
inspira-nos horror porque é obra do homem, mas os terremotos e as tempestades,
a fome e as epidemias, as inundações e as pragas eliminariam, com gastos
menores, muito mais gente.
Deixando de lado os cataclismas naturais, o homem
enfrenta permanentemente as agressões do clima, do meio ambiente, dos elementos
em geral e, se isso não fosse suficiente, deve, a todo momento, suportar as
hostilidades que a ele declaram, as forças invisíveis, tanto as que sobem da
terra como as que baixam do céu. Não há dúvida, pois, de que a natureza é, para
ele, inimiga mortal. Quando um homem diz que é ou quer ser
"naturista", só pode fazê-lo por esnobismo e de maneira parcial ou
temporária. Pois na verdade, para sobreviver, necessita de roupas e de uma
casa.
O resto dos animais da criação resiste muito melhor
às inclemências do meio. Mas o homem, à medida que se distingue do animal e se
afasta da barbárie, não tem mais remédio senão agir como o caracol. A casa é
seu único refúgio, sua verdadeira proteção. Para ter segurança necessita de
quatro paredes e um teto.
Dormir sob as estrelas, eis aí uma bela imagem
poética - mas a realidade que ela exprime é temível. Dormir descoberto à noite
é perigoso. Um mínimo de prudência aconselha a colocar uma tela protetora entre
o adormecido e o "ar livre" que lhe resplandece sobre a cabeça.
Aqui devo mencionar que dormir de noite ao ar livre
é o que faz do homem uma vítima indefesa oferecida em holocausto a toda classe
de raios cósmicos e telúricos que pululam no estado natural. Os perigos
diminuem consideravelmente para quem se mantém protegido. Quanto à dormir a sesta,
só pode trazer benefícios... a menos, é claro, que se procure a sombra de
alguma árvore maléfica. Mas, insisto, à noite quem dorme a céu aberto vê-se
reduzido a um estado de vulnerabilidade tanto mais completo quanto as horas
noturnas são precisamente aquelas em que se desencadeiam com violência sem
limite os bombardeios e caudais das forças invisíveis, quer espirituais,
físicas, elétricas ou magnéticas.
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